English | Español | Português | Italiano | Français | Deutsch | Nederlands | August 15, 2018 | Issue #36 | |||||
Sem coragem pra mudar dois anos após?A questão das drogas no governo LulaPor Natalia Viana
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Wálter Fanganiello Maierovitch Foto D.R. 2003 Al Giordano |
Maierovich, que foi o chefe da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) em 1999, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, é um defensor ardoroso da descriminalização do uso de drogas. “Porte de droga para uso próprio não é uma questão criminal. Não é questão de polícia, não é questão da Vara da Infância e da Juventude, esses tem que se preocupar com tráfico”, diz. O PhD em saúde pública e consultor do Ministério da Saúde Fábio Mesquita lembra que, num país democrático, os usuários ainda são marginalizados pelo poder público. “O país conquistou uma série de direitos democráticos, e isso vale para todos os brasileiros, menos para o usuário de drogas, que continuam tendo suas casas invadidas sem mandato judicial, as mães perdem o pátrio poder dos seus filhos pelo simples fato de usarem drogas”.
Práticas de Redução de danos
As cidades brasileiras que mais avançaram na política de redução de danos são São Paulo, Porto Alegre e Recife, durante governos do PT. Em todas elas houve ampliação da distribuição de seringas, campanhas para fortalecimento dos usuários (como a formação da primeira associação nacional de usuários), ampliação dos serviços de tratamento e programas de educação nas escolas com enfoque em redução de danos. No governo de São Paulo, cujo programa de drogas era gerido por Fábio Mesquita até o começo de 2004, criou-se um Conselho de Políticas Públicas Sobre Drogas, com representantes da sociedade civil, e também houve duas parcerias inédita: com a Associação dos Amantes da Música Eletrônica para minimizar os danos causados pelo uso de drogas, especialmente o ecstasy, na noite paulistana, e em academias de ginástica, onde tem havido aumento de uso de esteróides anabolizantes, gerando casos de overdose. Nas últimas eleições municipais, o PT perdeu as prefeituras de São Paulo e Porto Alegre, o que coloca em risco a continuidade o trabalho – especialmente porque os partidos que assumiram o governo, o Partido da Social Democracia Brasileira e o Partido Popular Socialista, são muito mais conservadores. Fábio Mesquita afirma que ainda é muito cedo para avaliar, mas “duvida” que partidos com esse perfil dêem continuidade às políticas. “E o pior é que a gente perdeu força para pressionar o governo Lula a partir de governos municipais que tinham políticas mais arrojadas”, lamenta. |
Com essa tendência crescente, começaram a surgir no final da década de 80 iniciativas para a redução de danos sociais e à saúde. O primeiro programa oficial foi desenvolvido na cidade de Santos, pela então prefeita Telma de Souza, do PT. O governo começou a distribuir seringas descartáveis para usuários de substâncias injetáveis. Foi um escândalo. O Ministério Público abriu processo contra a prefeitura, acusando “incitação ao uso”. Apesar disso, a medida foi muito bem-sucedida, principalmente em evitar a transmissão do vírus HIV e da hepatite C. O projeto passou a ser adotado em diversas outras regiões, e desde 1993 o Ministério da Saúde tem um programa nacional de troca de seringas. O problema é que a política parou por aí. “Ficou só na distribuição de seringas, e a gente sempre vem debatendo a necessidade de criar uma política nacional de redução de danos”, diz Fábio Mesquita.
Ele conta que o PT, partido ao qual é filiado, sempre teve uma abordagem mais humanista em relação ao uso de drogas. Não é à toa que a primeira iniciativa surgiu em uma prefeitura do PT. Durante a campanha para a presidência, em 2002, Mesquita participou da criação do programa de governo para essa questão. “Qual era a proposta do Lula? Colocar a política de drogas sob o comando do Ministério da Justiça, e assim saísse do ministério militar, que fosse gerida preferencialmente por um civil, e que a Secretaria Nacional Antidrogas mudasse de nome para Secretaria Nacional de Políticas Públicas Sobre Drogas. Que tivesse um enfoque multilateral, dialogando com a sociedade civil e tendo como centro a questão humanitária”.
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Dr. Fábio Mesquita Foto D.R. 2003 Al Giordano |
E mesmo esse pequeno avanço enfrente enorme resistência no conservador congresso brasileiro. Desde julho de 2004, o projeto está parado na Comissão de Justiça do Senado, e não há data prevista para votação, segundo a assessoria de imprensa da CCJ. O que não chega a ser uma novidade, em se tratando de um assunto tão polêmico: a última lei sobre as drogas, a 10.409, de 2002, levou 10 anos para ser aprovada pelo Congresso. E uma vez aprovada, o então presidente Fernando Henrique Cardoso vetou o texto em 80%.
Houve ainda mais uma mudança importante na legislação de combate às drogas durante o governo Lula. A lei 9.614, que estabelece o abate de aeronaves que invadirem o espaço aéreo brasileiro, foi regulamentada pelo primeiro governo de esquerda do país, como medida para coibir o tráfico internacional. Maierovich conta que, desde a sua gestão à frente da Senad, já havia muita pressão para que a lei fosse regulamentada. “Em todos os encontros da OEA, da ONU, vinha essa pressão americana dizendo que o Brasil precisava regulamentar, inclusive com ameaças de sanções econômicas”.
Maierovich se opôs veementemente à regularização, alegando inconstitucionalidade: a Constituição não prevê pena de morte. O assunto foi esquecido, e só voltou à pauta em meados do ano passado, quando a lei entrou em vigor. A partir dela, qualquer aeronave que viole o espaço aéreo brasileiro sem se identificar vai receber tiros de advertência. Se ainda assim não houver resposta, ela pode ser abatida. “É uma medida burra. Na Colômbia, sabe o que os traficantes começaram a fazer? Seqüestro- relâmpago de algum industrial, mulheres ou crianças, para poder voar. Além, disso, o congresso americano proibiu o governo de dar informações para países com legislação de abate, e eles têm 5 bases aéreas no continente – em Aruba, Curaçau, Manta e Iquitos. Então empresas “de guerra”, como a DynCorp, estão fornecendo informações mediante pagamento Virou negócio”.
Novembro do ano passado foi uma época de grande expectativa para aqueles que acreditavam em alguma mudança na política de entorpecentes no governo Lula. Uma grande reportagem no jornal carioca O Globo, seguida por outra da Folha de São Paulo, anunciava a criação da política nacional de redução de danos através de decreto a ser assinado prontamente pelo presidente. Já havia um decreto presidencial datado de 2002, que previa a criação de um programa nacional, mas até então nenhuma ação fora feita para tornar a política uma realidade.
Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos recebe propostas de Fábio Mesquita no último dia 30 de janeiro em Brasília. D.R. Marcello, Jr., Agência Brasil |
Mônica Gorgulho observou de perto a reação em cadeia. Estudiosa da cobertura da imprensa sobre drogas, ela disse que já esperava uma reação muito forte à proposta. Mas para ela a divulgação foi confusa e ajudou na repercussão negativa. “Do jeito que eu li as reportagens, acho que nem eu concordaria, porque se falou muito em locais de uso seguro, parecia que seriam em praças públicas, em qualquer lugar. Depois não ficou claro que aquilo seria para usuários dependentes de substâncias injetáveis. Pareceu que estávamos querendo abrir coffe shops holandeses”.
Sendo de má-fé ou não, a verdade é que ninguém esperava um recuo tão abrupto de setores do governo que vinham há um ano discutindo o decreto. Fábio Mesquita participou pessoalmente da redação do decreto que, depois, a Senad diria que era “apenas” uma idéia, nada mais. “Foi um trabalho muito sério. O Ministério da Saúde elaborou o decreto, e passou pela opinião do Ministério da Justiça, que deu parecer favorável, pelo passou pela Secretaria Nacional Antidrogas, que foi quem mais abrandou o decreto, e os dois ministérios (Saude y Justiça) aceitaram as mudanças e recomendaram que o presidente assinasse o decreto”, conta.
Em documento interino obtido com exclusividade pelo Narconews, de 29 de dezembro de 2003, o ministro Humberto Costa defende a criação da política de redução em termos bem progressistas: “A partir da compreensão e abordagem realistas dessa questão – de onde se conclui que não haverá um mundo sem álcool e outras drogas – novas alternativas devem ser buscadas para minimizar as conseqüências do uso dessas substâncias dentro de uma compreensão ampliada de saúde. Isso significa, concretamente, respeitar a escolha dos usuários de álcool e outras drogas promovendo a atenção integral à saúde e à vida dessas pessoas”. Outros documentos obtidos por Narconews atestam que o Ministro da Justiça se manifestou em 17 de novembro de 2003 “informando que nada tem a objetar quanto ao encaminhamento do supracitado decreto”. O Secretário Nacional Antidrogas sugeriu modificações e emitiu parecer favorável já em dezembro de 2003.
Por que, então, o governo não assumiu a proposta, e o pior, não assinou o decreto? Para Fábio Mesquita, quem parece decidir, de fato, sobre drogas no governo Lula é o gabinete civil da presidência. “É lá que se negocia a política de droga, e é onde chega todo tipo de pressão das forças conservadoras do país – a bancada evangélica tem trabalhado muito duro para não permitir nenhum avanço, a imprensa tem jogado um papel conservador -, e certamente organizações estrangeiras pouco interessadas em que o Brasil seja um modelo de avanço também devem estar jogando duro”.
A verdade é que, depois de 2 anos de governo Lula, pouca coisa mudou. É o que constata Fábio Mesquita: “A política de drogas é a mesma política conservadora do governo FHC, uma política que tem o mesmo general na sua direção, Paulo Uchoa, a secretaria tem o mesmo nome, continua no gabinete militar, dando um clima de guerra contra as drogas – ninguém entende mais de guerra que um general”.
O texto do decreto obtido com exclusividade pela Narco News
O presidente da República, no uso de sua atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, decreta:
Art 1º As ações que visam a redução de danos sociais e à saúde, decorrentes do uso de produtos, substâncias ou drogas que causam dependência, são reguladas por este decreto.
Art 2º A redução de danos sociais e à saúde, decorrentes do uso de produtos, substâncias ou drogas que causem dependências, desenvolve-se por meio de ações de saúde dirigidas a usuários ou a dependentes que não podem, não conseguem ou não querem interromper o referido uso, tendo como objetivo reduzir os riscos a este associados sem, necessariamente, intervir na oferta ou no consumo.
Art 3º As ações de redução de danos sociais e à saúde, decorrentes do uso de produtos, substâncias ou drogas que causam dependência, compreendem uma ou mais das medidas de atenção integral à saúde, listadas a seguir, praticadas respeitando as necessidades do público alvo e da comunidade:
Art 4º As Ações de informação, educação e aconselhamento, têm por objetivo o estímulo à adoção de comportamentos mais seguros no consumo de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência, e nas práticas sexuais de seus consumidores e parceiros sexuais.
Inciso 1º São conteúdos necessários das ações de informação, educação e aconselhamento:
- informações sobre os possíveis riscos e danos relacionados ao consumo de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência;
- o desestímulo ao compartilhamento de seringas, agulhas e outros instrumentos para consumo de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência;
- a orientação sobre prevenção e conduta em caso de intoxicação aguda (“overdose”);
- a prevenção das infecções pelo HIV, hepatites, endocardites e outras patologias de padrão de transmissão similar;
- a orientação para prática de sexo seguro;
- a divulgação de serviços públicos e de interesse público, nas áreas de assistência à saúde; e
- a divulgação dos princípios e garantias fundamentais assegurados na Constituição Federal e nas declarações universais de direitos
Inciso 2º As ações de informação, educação e aconselhamento devem, necessariamente, ser acompanhadas da disponibilização dos insumos destinados a minimizar os riscos decorrentes das práticas enfocadas.
Art 5º A oferta de assistência social e à saúde, na comunidade e em serviços, objetiva a garantia de assistência integral ao usuário ou ao dependente de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência.
Parágrafo único. São ações necessárias na oferta de assistência social e à saúde, quando requeridas pelo usuário ou pelo dependente:
Art 6º A disponibilização de seringas, agulhas e outros insumos de proteção à saúde consiste no fornecimento, em instituições e na comunidade, de insumos descartáveis a usuários ou a dependentes de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência, com o objetivo de prevenir doenças transmissíveis.
Inciso 1º A disponibilização de seringas, agulhas e outros insumos de proteção à saúde obedece ao princípio de acesso universal ao Sistema único de Saúde, devendo ser facultada, por meio de ações de redução de danos aos usuários ou dependentes de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência física ou psíquica.Inciso 2º A venda ou dispensação de seringas, agulhas e outros insumos de proteção à saúde por farmácias e drogarias dependem de prescrição médica.
Inciso 3º A disponibilização de seringas, agulhas e outros insumos de proteção à saúde poderá ser feita, complementarmente, por meio de máquinas automáticas de venda ou trocam, sob a supervisão de unidades locais de saúde.
Art 7º Os tratamentos substitutivos consistem na modalidade de tratamento da dependência baseada na utilização de produtos, substâncias ou drogas consumidos pelo sujeito do tratamento, seja em razão do princípio ativo, seja em razão da vida de administração.
Art 8 º Os locais para consumo de produtos, substâncias ou drogas que acusem dependência, serão implantados e mantidos sob a responsabilidade do Sistema Único de Saúde, devendo contar com a supervisão de equipe interdisciplinar.
Art 9º As ações de redução de danos devem ser desenvolvidas em todos os espaços de interesse público em que ocorra ou possa ocorrer o consumo de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência, ou para onde se reportem seus usuários.
Parágrafo único. As disposições desse Decreto aplicam-se no âmbito do sistema penitenciário, das cadeias públicas, dos estabelecimentos educacionais destinados à internação de adolescentes, dos hospitais psiquiátricos, dos estabelecimentos destinados ao tratamento ou à recuperação de usuários ou dependentes ou de quaisquer outras instituições que mantenham pessoas submetidas à privação ou à restrição de liberdade.
Art 10º As ações de redução de danos devem ser desenvolvidas em consonância com a promoção dos direitos humanos, tendo especialmente em conta o respeito à diversidade dos usuários ou dependentes de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência.
Inciso 1º Em todas as ações de redução de danos, devem ser preservadas a identidade e a liberdade de decisão do usuário ou dependente ou pessoas tomadas como tais, sobre qualquer procedimento relacionado à prevenção, ao diagnóstico e ao tratamento.Inciso 2º A contratação de pessoal para o trabalho de redução de danos, de que trata esse Decreto, deve dar prioridade aos membros da comunidade onde as ações serão desenvolvidas, levando-se em conta principalmente o acesso à população alvo, independentemente do nível de instrução formal, observadas, no âmbito da Administração Pública, as normas de acesso a cargos ou empregos públicos.
Art 11º este decreto entra em vigor na data da sua publicação.
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