The Narco News Bulletin |
August 16, 2018 | Issue #29 |
narconews.com - Reporting on the Drug War and Democracy from Latin America |
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Tradução de Luiz Paulo Guanabara
Finalmente encontrei alguém que pode responder à pergunta que me persegue há 15 meses: O que teria acontecido com aquela lei para descriminalizar o uso de drogas que foi proposta pela administração do então presidente Fernando Henrique Cardoso?
O Congresso Nacional, em janeiro de 2002, emendou (leia: estripou) a legislação de maneira misteriosa, mas nenhuma agência comercial de notícias reportou o que aconteceu ao documento que quase entrou para a história.
Há 15 meses a nossa equipe da Narco News tem perguntado sobre essa lei... e ninguém sabia responder, nem mesmo os ativistas ou especialistas em política de drogas brasileira que entrevistamos sabiam...
Mas por fim encontramos alguém que sabe:
Célia sabe.
"Em janeiro de 2002, O Congresso aprovou uma lei no Brasil", diz Célia Szterenfeld, diretora do PIM, Projeto Integrado de Marginalidade, uma organização não-governamental com sede na caótica região portuária do Rio de Janeiro que trabalha com adictos e profissionais do sexo para ajudá-los a se organizar na luta pelos seus direitos e necessidades. "A lei instituiu os tribunais de droga de acordo com o modelo utilizado em algumas partes dos Estados Unidos. Para os usuários de drogas, praticamente nada muda. Agora eles têm de escolher entre tratamento forçado em clínicas de internação ou ir para a prisão."
N.T.: Poderíamos acrescentar: "...em clínicas de internação de caráter duvidoso".
Além da natureza vaga e desapercebida daquela lei de janeiro de 2002, nem mesmo esta débil reforma foi implementada, ela nos conta. "Aqui no Brasil, o legislativo às vezes aprova algumas leis que não colam", ela continua. "Essa lei não foi muito utilizada. Para uma lei vir a funcionar, é necessário criar estruturas. Muitas vezes depende do que a administração regional faz."
Mas Szterenfeld não está nem um pouco satisfeita com a nova lei - ao contrário de alguns ativistas e organizações de política de drogas e de redução de danos nos Estados Unidos, que estariam satisfeitos com um programa de Tribunais de Droga com tratamento forçado ao invés de encarceramento forçado.
"Somos totalmente contra os tribunais de droga", ela explica.
Entenda bem, prezado leitor: ela e suas colegas, com um conhecimento decorrente de trabalho de campo, são tão radicalmente contrárias aos tribunais de drogas, ela conta ao Narco News, que contrataram advogados para processar os médicos e psicólogos que participarem na imposição de "tratamento" forçado para os adictos: "Porque", ela, uma psicóloga, observa, "isso é anti-ético".
"O problema básico de se implementar os tribunais de droga", Szterenfeld explica, "é que eles violam a Constituição Brasileira e o direito de não ser obrigado a fornecer provas contra si mesmo. Forçar as pessoas a se submeter a testes de drogas periódicos é uma violação da Constituição."
A posição política e a sabedoria estratégica de Szterenfeld e seus colegas, que se reuniram essa semana no Rio de Janeiro (leia o relato do encontro na Parte 1 dessa série, "Uma Política de Drogas a Partir da Base") são o seguinte: eles não ficam de pires na mão ou de joelhos pedindo ou implorando às autoridades que lhes concedam pequenos refugos chamados "reforma".
Em vez disso, eles inicialmente avaliam as necessidades dos indivíduos e lutam incansavelmente para fazer com que as autoridades assintam aos desejos e demandas genuínas de uma população cada vez mais organizada.
Para muitos que não têm experiência direta com usuários de drogas e adictos, especialmente as pessoas do "mundo desenvolvido" que confiam nas "informações" veiculadas pela mídia comercial sobre esse assunto, pode ser difícil acreditar na possibilidade de os "usuários de drogas" ou outros setores criminalizados nas margens impostas pela sociedade se organizarem. Não são os drogados, afinal de contas, pela sua própria natureza e definição, indivíduos necessariamente desorganizados? É isso o que a mídia reporta. É isso o que as autoridades dizem. É isso o que a classe médica proclama. É isso o que os professores universitários, com notáveis exceções, ensinam. É nisso que as pessoas são enganosamente levadas a acreditar.
No entanto, eis o que está acontecendo em algum lugar de um país chamado América: uma população de usuários de drogas cada vez mais organizada - usuários de drogas leves e pesadas, lícitas e ilícitas, usuários de cocaína, de álcool, de crack, de nicotina, de maconha - está se levantando, unida, e lutando por dignidade, por justiça, por liberdade, como outros grupos que a sociedade empurrou para as margens - minorias raciais, religiosas ou sexuais, assim como as mulheres e as massas - já realizaram com sucesso em algumas sociedades abertas.
Em esplêndida ironia, Célia Szterenfeld conta que sua paixão por justiça em seu país natal, o Brasil, nasceu, paradoxalmente, nos Estados Unidos, no começo e meio dos anos 80, quando ela estudava na Universidade de Columbia, em Nova York.
"Meu principal compromisso é a luta contra a epidemia da AIDS", ela conta. "Perdi muitos amigos em Nova York nos anos 80. E agora trabalho com a sociedade civil no Brasil. Nosso trabalho é fomentar a auto-organização de grupos marginalizados."
O caminho para a auto-organização começou em 1991, quando Célia e outras pessoas se reuniram para fomentar essa atividade entre mulheres da indústria do sexo - as chamadas prostitutas; como se qualquer forma de trabalho na qual vendemos o corpo, os dedos, o cérebro, os olhos ou os ouvidos para os outros, por necessidade econômica, fosse de algum modo distinto?
"Em 1994, começamos a ajudar os usuários de drogas a se organizar. Já existia, desde 1991, uma organização de famílias de presidiários. Gabriela Silva Leite, importante líder política das prostitutas, foi à Europa em 1988 e 1989 para participar de encontros internacionais e, ao voltar, começou a organizar..."
Em 1993, o fogo da auto-organização tinha se espalhado até a extensa comunidade de travestis da Cidade Maravilhosa. Esse momento foi, de fato, uma espécie de reviravolta.
"Todos os dias da semana três mil mulheres e travestis trabalham as ruas, em vinte locais diferentes. Não temos um distrito da luz vermelha*. É mais disperso", diz Szterenfeld. "Qual o número total de profissionais do sexo? Somente no bairro de Copacabana, estimamos que existam cinco mil. No Rio de Janeiro, diferentemente de São Paulo, não temos um sistema de cafetões. As mulheres e os travestis são independentes. Eles se organizaram assim."
*N.T.: referência ao bairro onde as profissionais do sexo trabalham em Amsterdã.
"Por organização, quero dizer primeiro que não costumava haver nenhuma espécie de solidariedade entre eles", relembra Szterenfeld. "Se alguém fosse vítima de um cliente, machucado, espancado ou morto, só muito raramente um deles intercederia a favor do colega. Mas agora eles ensinam uns aos outros a anotar as placas do carros que os levam para os programas. E buscam memorizar o modelo do carro, a cor e outras características de identificação..."
"Hoje em dia existe muito pouca violência oriunda dos clientes", ela observa, "exceto contra os travestis. Mas eles estão ficando muito organizados; e não têm crianças e problemas familiares como muitas das profissionais do sexo. Poucos travestis no Brasil querem fazer uma cirurgia para mudar de sexo ... apenas de cinco a dez por cento deles, no máximo, querem ser operados. E, é claro, eles já são muito audaciosos e valentes."
Ao longo da última década, como resultado dos processos de auto-organização dos trabalhadores do sexo marginalizados, a situação melhorou drasticamente. Os trabalhadores organizados limitaram os espaços nos quais o Poder - lícito ou ilícito - poderia persegui-los e prejudicá-los. "Ás vezes ainda ocorrem batidas policiais, especialmente antes do Carnaval, quando as autoridades querem aparecer nos jornais", ela explica. "Mas a lei aqui diz que você não pode ser preso por oferecer serviços, por ficar parado na esquina... A lei não permite que os donos de hotéis forneçam quartos para prostituição, e é ilegal você ser um cliente... mas os clientes nunca são processados. Existem leis a respeito da nudez, especilamente nas horas comerciais... Mas a polícia não fica perseguindo e prendendo as profissionais do sexo todos os dias, como acontece em tantas outras partes do mundo."
O mesmo princípio organizador, diz Szterenfeld, pode e está sendo aplicado agora por usuários de drogas e adictos no Brasil, limitando os espaços que permitiriam que as autoridades os prejudicassem ainda mais.
"Estamos desenvolvendo uma pedagogia de redução de danos", ela acrescenta, em referência ao proeminente trabalho do Paulo Freire, autor de "Pedagogia do Oprimido", uma das influências da sua formação intelectual. Outra influência, ela observa, é oriunda dos Estados Unidos: a parcela do movimento feminista dos anos 70 que não acabou se aliando às igrejas e aos patriarcas em campanhas de censura sexual, mas cujas raízes estão fincadas no trabalho da Coletiva de Boston, autoras de "Our Bodies, Ourselves", disseminando informação diretamente compilada a partir das bases.
E então, embora as idéias da Coletiva de Boston e mesmo as de Paulo Freire tenham há muito se enraizado na política sexual dos Estados Unidos, e, no que diz respeito à política de drogas, existam organizações de redução de danos e outras organizações como o Act-Up, além dos heróicos clubes de Maconha Medicinal, o conceito de auto-organização dos usuários de drogas pesadas foi menos bem-sucedido na gigantesca nação consumidora de drogas do norte do que atualmente no Brasil.
"Por que você pensa que isso está acontecendo aqui?", uma colega me perguntou hoje. Posso me aventurar a dar um palpite: o Brasil não é um país produtor de drogas. É um país consumidor. É o segundo maior consumidor de cocaína de toda a América... atrás apenas dos Estados Unidos.
Como nação consumidora, o Brasil emergiu como um laboratório de redução de danos superior ao dos Estados Unidos, em relação às drogas pesadas. Enquanto em algumas regiões valentes dos Estados Unidos, seringas limpas são distribuídas para os adictos (o mesmo acontece aqui, mas por meio do bom trabalho de uma organização diferente, sobre a qual falaremos nos próximos dias) - e, é claro, o altamente bem-sucedido movimento pelo uso da maconha para fins medicinais está em guerra com as forças de ocupação do governo federal em Washington DC -, os usuários e adictos de drogas pesadas no Norte não conseguiram até hoje se organizar de maneira a limitar efetivamente o campo de manobra que o Poder tem para reprimi-los e oprimi-los.
A auto-organização ao estilo brasileiro chegou.
A pedagogia da redução de danos no Brasil tem potencial para colocar o movimento pela reforma das políticas de drogas, internacionalmente, de ponta cabeça e alterar a política de drogas. Nos Estados Unidos, entre alguns ativistas pela legalização das drogas, existe uma tendência a subestimar as iniciativas de "redução de danos", considerando-as muito desconjuntadas, muito "aceitáveis", muito "light", muito devagar... e pode ser que algo esteja faltando a esses esforços (embora a nossa tendência na Narco News tenha sido sempre "que mil flores floresçam e que a proibição de drogas sofra a morte das mil facadas")... Mas deixe-me tentar, caro leitor, explicar a diferença...
Quando pensamos sobre as iniciativas tradicionais de "redução de danos" nos Estados Unidos, tendemos a pensar - às vezes corretamente, outras vezes não - em um ou uma assistente social ou "autoridade" médica oferecendo seringas limpas ou tratamento para adictos, em um ambiente característico dos "programas sociais"... Algo mais relacionado à caridade e ao fazer o bem - e à auto-perpetuação das burocracias e da "autoridade" médica ou psiquiátrica sobre a autonomia individual - do que à auto-organização e à concessão de poder...
Mas, no Brasil, é outra a vertente a partir da qual o poder está se formando: os usuários de drogas e adictos, como outros grupos marginalizados, tais como os já mencionados profissionais da indústria do sexo e os membros das famílias de presidiários, estão assumindo o controle da própria vida cotidiana, sem esperar que o governo ou outra autoridade lhes dê permissão. Eles avançam, e o Poder então tem de se adaptar às novas realidades que reivindicam, a partir das bases. As reformas governamentais são então respostas à auto-organização; elas não a precedem ou causam.
Isso é significativo por muitas boas razões, uma delas especialmente poderosa: na medida em que os usuários de drogas e os adictos se organizam localmente e se expandem, eles se politizam, aprendendo e ensinando as aptidões da democracia e como acionar estruturas governamentais e midiáticas, que anteriormente ou os ignorara ou reprimira, ou ambos. Esse movimento brasileiro de redução de danos tornou-se agora a tendência dominante em um movimento nacional de descriminalização das drogas consideradas ilícitas, antes liderado principalmente por pessoas que simples e justificadamente queriam ter o direito de fumar maconha em paz: mas esses setores há muito têm sido liderados pelas classes média e alta, como nos Estados Unidos.
O movimento brasileiro de redução de danos derrubou o muro classista da reforma da política de drogas: os líderes, os porta-vozes e os organizadores não estão representando outros; eles estão se apresentando com todo o poder e a sabedoria que somente podem ser encontrados, neste planeta, nas fileiras (sem ou com duplo sentido!) das massas.
Portanto, quando Célia Szterenfeld e seus colegas se reúnem para traçar estratégias e discutir os importantes acontecimentos mundiais, tais como o que vai ocorrer em 2006 quando as nações do mundo deverão renegociar os tratados internacionais de repressão à droga, ela pode comentar que todos eles deveriam pedir ao Presidente Lula para não assinar a proposta de renovação do atual tratado que impõe a proibição de drogas em todos os países.
E eles podem discutir algo dessa dimensão, de abrangência internacional, (o povo dizendo ao seu presidente o que fazer! Imagina!) com o conhecimento de que, como a organização deles é formada a partir das bases, têm a oportunidade concreta de criar as condições para que o seu presidente eleito possa dar aquele passo corajoso; um passo que, caso dado pelo presidente do Brasil, certamente seria imitado pelos líderes de outras nações latino-americanas e provavelmente de outras nações de diferentes continentes.
Assim, eles se erguem das bases, vindos dos muitos cantos desse vasto país, de tantas direções horizontais ao mesmo tempo, em direção àqueles que estão acima, no poder. E os empossados em breve - se não agora mesmo - terão de oferecer uma resposta genuína.
Não é mais uma opção da política de drogas marginalizar o povo. Elas, eles, nós, vocês, estamos chegando para derrubar a desastrosa política de proibição de drogas, por meio do autêntico princípio democrático da auto-organização.
Isso já não é o movimento pela legalização das drogas do seu pai, composto de advogados libertários da elite e de entusiastas da maconha com formação universitária e procedentes da contracultura, embora estes também sejam muito bem-vindos à mesa ... É um movimento que reflete a autêntica face do mundo, e o está diretamente nos olhos. Quando seu olhar retornar do espelho, você saberá, caro leitor, que a vitória está próxima.
Leia a Parte III desta série:
130 oponentes à guerra das drogas encontram-se em São Paulo
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Secretária executiva do Ministério da Saúde critica a oficial política de drogas
Leia a Parte V desta série:
A diplomata marginal explica o "crime organizado" no Brasil
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O desevolvimento das ações de redução de danos no Brasil
Leia a Parte VII desta série:
Presidente Lula, olhe para a experiência de seus conterrâneos!
Leia a Parte VIII desta série:
O marketing do mito da guerra das drogas