English | Español | Português | Italiano | Français | Deutsch | Nederlands | August 15, 2018 | Issue #37 | |||
Oxi: a nova droga na fronteira amazônicaDescoberta pela Ong Reard, tem se alastrado entre os mais pobres da regiãoPor Natalia Viana
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Mapa: GuiaNet |
O projeto, financiado pelo Centro de Controle de Doenças dos EUA, acabou se deparando com uma dura realidade: nas cidades fronteiriças, o oxi substituiu a mescla, com efeitos muito mais nocivos.
Brasiléia e Epitaciolândia são cidades conhecidas de qualquer um que estude o tráfico de cocaína vindo da Bolívia para o Brasil. Cidades pobres, cercadas de periferias principalmente às margens dos rios, onde os habitantes moram em casas de madeiras sobre palafitas, elas ficam à distância de um leito d´água da cidade de Cobija, ao norte do país andino. A rota mais comum usada para a produção de cocaína, oxi e mescla, segundo os entrevistados da Reard, é a partir do Peru para a Bolívia pelo lado brasileiro, onde a estrada é melhor, para na amazônia boliviana ser transformada em cocaína, crack e mescla. Depois, ela volta ao Brasil. “O rio que separa os dois países é alagadiço, enche quando é período de chuvas e quando não chove fica raso, dá para atravessar andando. Isso facilita muito o tráfico”, explica Álvaro Augusto Andrade Mendes.
Barriga bem-vinda (para alguns)
No Brasil, “barriga” significa uma notícia errada publicada por algum veículo jornalístico. Pois foi exatamente o que aconteceu no final de abril, quando a notícia da existência da nova droga, oxi ou oxidado, se espalhou pelo mundo. O Centro de Información y Educación para la Prevención del Abuso de Drogas (Cedro), situado no Peru, relatou que a descoberta seria uma prova de que haveria produção em massa de ópio no Peru, chegando ao Brasil em forma de “Oxy”. A notícia foi reproduzida pelo Diário Correo, pelo site noticioso peruano La Última e por vários outros sites da internet. Na verdade, a informação se baseia em um grande engano. A droga Oxy, ou OxyContin, é um remédio produzido pela empresa americana Purdue Pharma, cujo principal componente é um opióide sintético, o oxycodon. É usada para alívio de dores fortes e vendida, nos Estados Unidos, sob prescrição médica –o que não evitou seu alastramento como droga recreativa, causando um enorme problema pelo alto grau de adição que gera. Nada a ver com o oxi brasileiro, elaborado a partir do refugo da cocaína. Com certeza, ao receber a notícia de que a causa do problema com o Oxy nos EUA poderia estar vindo do Peru, alguém na Casa Branca vibrou de alegria: poderia culpar mais essa vez os índios sul-americanos. Só que, desta vez, não colou. Descarge o documento que explica o qué é o oxi (Power Point) |
Vendido em pedras –que podem ser mais amareladas ou mais brancas, dependendo da quantidade de querosene ou cal virgem, respectivamente– o grande apelo do oxi é justamente o seu preço: enquanto a mescla custa de 5 a 10 reais uma trouxinha que serve 3 cigarros, o oxi é vendido de 2 a 5 reais por 5 pedras. “É uma droga popular, inegavelmente, mas dependendo do período o preço aumenta: se é época de chuva, se a polícia intensifica mais a vigilância”, explica Álvaro. Além dos problemas sociais que claramente empurram esses jovens para o uso da droga, a proximidade com o comércio ilegal também abre as portas. Segundo Rodrigo Correia, muitos dos seus entrevistados trabalhavam ou haviam trabalhado como “mulas”, atravessando a fronteira portando a droga, ou vendedores. “Muitos deles sofrem a influência de amigos que consomem ou estão envolvidos com o tráfico. Mas a maior questão do oxi é que ela é uma droga mais rápida, causa um efeito mais forte, e é a única coisa que vem para eles, eles não têm opção”.
Essa falta de opção não poderia ser mais fatal. Altamente aditiva, a pedra é consumida em latinhas com furos, como o crack, o que torna a fumaça mais pura e o efeito ainda mais forte. Mas há casos, também, de consumo de oxi, triturado, em cigarros, misturado à maconha ou ao tabaco, e em pó, aspirado. Seja da maneira que for, o consumo é sempre acompanhado de bebida –cachaça, cerveja, ou coisa pior. “Muitos usam junto com álcool, não o álcool de beber, mas o álcool de tampinha azul, como eles chamam, que eles misturam com suco de groselha”. O “álcool da tampinha azul” nada mais é que álcool etílico, desinfetante usado na limpeza de casas.
O uso do álcool é quase indispensável, segundo apuraram os pesquisadores da Reard, por causa de uma característica do oxi, a chamada “fissura”. Rodrigo explica o que ouviu dos seus entrevistados: “No começo eles sentem uma sensação de euforia, de ânimo. Depois vem o medo, a mania de perseguição, a paranóia”. A droga só dá “barato” no momento em que está sendo consumida, e cada pedra dura cerca de 15 minutos. Para perpetuar o barato, o álcool serve de alívio entre uma pipada e outra, num ritual que se alonga por mais de 6 horas, geralmente à noite.
Para conseguir mais droga e calar a “fissura”, é comum que os usuários se entregarem a pequenos roubos e à prostituição, o que os torna mais vulneráveis à AIDS e demais doenças sexualmente transmissíveis, ainda mais porque, sem atenção do poder público, o conhecimento sobre sexo seguro é muito pouco entre essa população. “A gente viu na pesquisa que tanto o início do uso da droga quanto início da vida sexual acontece dos 9 aos 14 anos de idade, um dado que alarmou a gente”, conta Álvaro Mendes.
Extremamente nocivo ao organismo, o uso do oxi perturba o sistema nervoso central e leva à “paranóia”, ao medo constante. Mas vai além disso: “Eles ficam nervosos, há emagrecimento rápido, ficam com cor amarelada, têm problemas de fígado, dores estomacais, dores de cabeça, náuseas, vômitos, diarréia constante”, conta Álvaro. Trabalhando há mais de 5 anos com redução de danos, ele conta que jamais se chocou tanto quanto ao presenciar o consumo de oxi: “Quando parava de pipar a pedrinha, tragando a fumaça pela boca, ele caía vomitando e defecando, e ficava tendo barato no meio do vômito e das fezes, até se levantar para consumir de novo”. Outro dado alarmante, dessa vez em termos numéricos: cerca 30% dos que foram entrevistados pela equipe da ONG morreram no período de um ano – a grande maioria por efeito da droga, embora alguns também tenham sido mortos por participarem de roubos ou tráfico.
Outro motivo que leva ao adoecimento e até à morte é a própria “paranóia”, que os faz evitar procurar ajuda. Rodrigo conta que o chocou o caso de um jovem de 18 anos que tinha pavor de ir ao hospital e se negava a ser medicado, embora tivesse um ferimento exposto. “Toda vez que ele entrava num hospital, se não segurassem, ele fugia. Ele mesmo se medicava. A gente via que ele estava se acabando mesmo. Magro, com aspecto físico terrível, a questão da higiene pessoal não existia mais, parecia um espectro. Aliás, essa é uma maneira de conhecer quem usa a droga há muito tempo, se olhar com cuidado: parece um espectro”.
Mas o que deveria gerar preocupação e mais cuidado do poder público acaba gerando, pelo contrário, asco e repulsa. Segundo relatam os profissionais que estudaram os efeitos das droga, o preconceito ainda é muito grande. Álvaro conta que muitos agentes de saúde nem mesmo se aproximam dos usuários. “Em uma intervenção que a gente fez, tentado uma aproximação dos agentes de saúde com os usuários, isso ficou muito claro: a gente ficou no meio da rua, de um lado os usuários e do outro os agentes de saúde”. Ele diz também que, por serem as localidades estudadas em cidades do interior, os usuários ficam “marcados”, muitas vezes pelos próprios agentes, que “espalham para a cidade inteira” seu vício.
A polícia não age de maneira diferente. O relatório deixa bem claro que, nas cidades fronteiriças, os usuários são muito mais perseguidos e sofrem uma repressão muito maior do que na capital do Acre, Rio Branco. “Em alguns lugares eles não podiam permanecer na rua até certa hora porque a polícia dava toque de recolher. Chegavam e os mandavam embora. Se não fossem, eram presos, o que é um absurdo, porque não se pode impedir ninguém de ficar numa via pública”, denuncia Rodrigo. A equipe relatou a situação às autoridades da cidade de Epitaciolândia, que se prontificaram a dizer que resolveriam a situação, pois apenas alguns membros da força policial tinham esse “hábito”.
Para lidar com uma droga tão danosa, o trabalho de redução de danos é mais que necessário. Mesmo assim, o que o pessoal da Reard encontrou foi um absoluto descaso das autoridades. “Tem que estabelecer um vínculo com eles, conversar sobre os danos que causa esse tipo de droga e os cuidados que eles devem ter quando consomem”, diz Álvaro. Algumas medidas simples, como cuidar da água que consomem, tomar vitamina C, não consumir álcool “de tampinha azul” e cuidar do local onde usam a droga seriam muito positivas e, em alguns casos, poderiam até evitar a “falência total”. Com esse intuito, a Reard tem se reunido com gestores estaduais para elaborar uma política pública específica para os usuários do oxi. Mas, para Álvaro, “falta um compromisso do poder, principalmente o estadual, porque geralmente se a demanda vem de cima para baixo eles aceitam, mas se vem de ONGs não é muito aceita”.
No próximo dia 24, a Reard vai se reunir com gestores do estado do Acre, representantes do Ministério da Saúde e gestores se saúde do Peru e da Bolívia. E, para dar continuidade ao trabalho, no próximo semestre a ONG vai encabeçar uma pesquisa específica com os usuários de oxi. “Há muita coisa que a gente ainda não sabe, como qual é a causa biológica das mortes pelo oxi e que outras substâncias são usadas no preparo”, diz Álvaro Mendes.
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